Um dos bons livros a respeito do período entre as duas guerras mundiais é Cool Conduct. Nele, Helmut Lethen tece uma trama complexa de relações, em que The Art of The Wordly Wisdom, do teólogo jesuíta Baltassar Gracian liga-se de forma improvável ao pensamento de Walter Benjamin e à grupos de resistência ao nazismo, como a Rote Kapelle. O livro aborda muitos assuntos, e seria difícil resumi-lo da forma breve como aqui propõe-se. Entre outras coisas, ele oferece um contexto amplo em torno de histórias que aos poucos tem sido tornadas públicas, como o relato que mistura ficção e biografia feito por Enzensberger em Hammerstein:

“Na noite de 3 de fevereiro de 1933, o novo chanceler alemão reúne-se com a cúpula das Forças Armadas. Num discurso ao mesmo tempo meditado e inflamado, Adolf Hitler tenta ganhar o alto oficialato prussiano. A campanha será bem-sucedida, com raras exceções e recusas. Entre essas, a mais dolorida terá sido a do comandante supremo do Exército, o general Kurt von Hammerstein-Equord. Em Hammerstein ou a obstinação, Han Magnus Enzensberger recompõe os traços de um homem de visão e caráter raros: um militar que considera a preguiça uma virtude essencial; um político de índole cosmopolita, pronto a colaborar estreitamente com a União Soviética; e, não por último, um pai de família disposto a tolerar e mesmo propiciar a militância das próprias filhas e filhos no movimento comunista internacional ou na Resistência alemã.”

De forma muito resumida e lacunar, o trecho destacado abaixo —de crítica escrita para o catálogo da residência de Dudu Tsuda, no Paço das Artes, para desenvolvimento da obra Medo e Confiança — sugere uma analogia entre o clima conservador que marca o período entre as duas grandes guerras, e a atual escalada de conservadorismo que vai se agravando desde o 11 de Setembro. Um dos elementos que apoiam esta analogia é o apego à certos procedimentos científicos baseados em estatísticas e medições por meio de aparelhos, algo que torna-se comum na época, segundo Lethen, como reação à perda de confiança dos homens em seus pares, numa época corroída por guerras e crises (um texto paralelo que, apesar de não figurar entre os temas explícitos do livro, aparece de forma eloquente em vários trechos):

O formato proposto por Tsuda mistura elementos de instalação, ateliê e museu – cruzando fronteiras entre obra, curadoria e pesquisa, em uma ação heteróclita. Confiança e medo tornaram-se sentimentos marcantes nos tempos atuais, se é que algum dia deixaram de ser. Muito se disse sobre o fim de utopias e polaridades (ou da própria história). Mas essas cisões — supostamente superadas quando encerra-se o ciclo histórico baseado na divisão dos países entre capitalismo e comunismo – parecem reverberar, de forma difusa, nas tensões dispersas mundo afora. O resultado é um acirramento de disputas e estranhamentos que se manifestam na forma extrema de atentados ou, de maneira sutil, nas divergências todas de cada dia.

Tempo de sinais trocados, em que o desarmamento de guerrilhas históricas como o IRA, o ETA e o FLNC[1] acontecem junto a uma nova escalada da intolerância às diferenças. Como na Viena pós-guerra, descrita por Manès Sperber em Sieben Fragen zur Gewalt — Leben in dieser Zeit, as fragilidades das instituições parecem, outra vez, escapar pelas frestas, levando muita gente a reencenar o realismo desencantado que marca o período entre as duas grandes guerras. Se é que algum dia as instituições deixaram de ser frágeis, por trás das capas duras que ostentam como forma de manter o estado das coisas.

A partir dos anos 1920, segundo Lethen[2], surge um novo objetivismo que Mannheim considera uma forma de ver as coisas marcada pelo medo: as pessoas não confiam mais nos homens de seu tempo, por isso recorrem a balizas externas para controlar o comportamento, em meio à barbárie crescente. Seria isso o equivalente do papel desempenhado hoje em dia pelas leituras estatísticas da área conhecida como Big Data, que interpreta dados para permitir um acesso ao que se encontra imerso na quantidade desproporcional de informações (e versões) disponíveis nas redes que organizam a sociedade atual? Ou algo semelhante à inflação de abordagens cognitivistas em vários campos de conhecimento que parecem ter esquecido que há mais coisas entre um neurônio e outro do que podem sonhar nossas vãs estatísticas?

Este tipo de paralelismo não se resume aos exemplos mais explícitos, tampouco deve ser entendido apenas no aspecto negativo. Vale neste sentido observar certas continuidades entre o pensamento de Benjamin e a chamada Arqueologia das Mídias. Parikka entende a cool conduct também no aspecto de continuidade entre os pensamentos sobre a materialidade, que estruturam certo modo de fazer a crítica da cultura e da sociedade estabelecido justamente na Europa da virada do século XIX ao XX — por exemplo, no marxismo ou na psicanálise. Este afastamento não deixa de ser um distanciamento do tipo que foi buscado na ciência através de certas metodologias, ou nas artes em figuras como o distanciamento brechtiano.

(a desenvolver, link com Benjamin, Ernst, e o trânsito entre e o reprodutível e o operativo.)

Não cabe desenvolver o tema aqui, mas um dos aspectos interessantes na leitura de Cool Conduct, é perceber a centralidade de certo objetivismo no modernismo alemão (constituído em grande medida a partir de Brecht e seu trabalho de contradição*), em comparação com a centralidade de certo subjetivismo no modernismo brasileiro (através do exemplo um tanto excepcional de Flavio de Carvalho). Em O bonde, a carroça e o poeta modernista, Roberto Schwarz aborda o tema indiretamente, ao discutir certas proximidades entre Brecht e Oswald de Andrade, que explicam aspectos dos contextos em que um e outro estão inseridos nesta época de radicalização à direita ao redor do mundo, através de pistas indiretas em seus escritos.

(a desenvolver, link com notas ainda bastante pouco desenvolvidas em Marchas, Voos e Utopias: Oswald e Brecht como avessos.)

Generalizações do tipo dificilmente escapam do didatismo, sendo sempre reducionistas no sentido de que não faltarão exceções para descontrui-la. Em todo caso, não deixa de ser curioso pensar qual o sentido desta oposição, que todavia tem exceções bastante óbvias (como a poesia e a arte concreta paulista). Em todo caso, há nesta oposição algo que remete à escassez de pesquisa forma na arte moderna brasileira; a distância que surge neste suposto contraponto objetivismo e subjetivismo, talvez, possa ser lido pela chave de um formalismo específico de poéticas fora de lugar, o que retorna à Debret mas configura-se de forma especialmente evidente em Tarsila do Amaral ou Volpi, conforme descrito de forma sistemática por Rodrigo Naves).

Esta possível inversão seria coerente com a hipótese de Rodrigo Naves de que o modernismo brasileiro tem uma espécie de déficit formalista (não necessariamente como característica negativa, mas como elemento que o insere num sociedade distinta das “colônias” onde os artistas da modernidade local buscaram certos exemplos), mas também um complicador pois faz da análise dos dois contextos antes espaços de exceções a serem consideradas, que campos fechados em torno dos contrapontos inicialmente aparentes.

Neste contexto, não deixa de ser curioso a exclusão de Flavio de Carvalho, esta excessão relevante, do cânone modernista. Além disso, seu interesse em artes efêmeras endossa uma leitura mais ampla que proponho da arte contemporânea, a partir dos vetores que na performance levam às experiências com práticas em tempo real. Deste ponto-de-vista, a atual inflação de experiências em tempo real pode ser entendido na conjuntura de um abando em negociação das premissas da modernidade, que luta por continuidade, busca recuperar formatos, mas mesmo que lenta e descontinuamente talvez continue a sucumbir.

Claro que tudo é um pouco mais complicado, se quisermos concordar com a leitura da antropofagia feita por Norval Baitello, a luz de Flusser. A gula de Flusser, de Baitello, situa o problema todo num entroncamento bastante complicado entre colonial e pós-colonial, mas também entre ocidente e oriente. E o pós-guerra, e seus desdobramentos, representam uma constante negociação em favor da heterogeneidade que implica, por exemplo, no surgimento das formas de pensar pós-colonialistas (e seus derivados no campo da cultura e do gênero, entre outros), ao mesmo tempo que as artes se interessam de forma cada vez mais explícita pelo oriente (Cage é um exemplo forte, mas é preciso averiguar até que ponto, e guardadas as devidas proporções, Flavio de Carvalho não ocupa um lugar deslocado de importância equivalente).

Mas esta forma menos forma, que Naves declara difícil, não pode ser relacionada de forma evidente aos desvios da forma que surgem na arte contemporânea na forma de retornos declarados por autores os mais diversos (ao real, em Foster, ao social, em Bishop, ao sonoro, em Kahn, ao performático, em Salter, ao sensório, em Letter). Se esta ênfase em aspectos do não-verbal pode ser vista como uma conduta menos cool, todavia há muito o que se investigar diante das perguntas abertas pelos vetores que o texto coloca em jogo:

(1) um paralelismo assustador entre os momentos anteriores à segunda guerra mundial e as escaladas conversadores que em diferentes formas e lugares;

(2) as defasagens entre as culturas européias e outras que, a luz do pós-colonialismo, ao invés de atrasadas tem sido lidas como alternativas à certa narrativa de progresso (o que desautoriza o entendimento apressado de certos desvios dos modos de viver europeus pela lógica do obscurantismo algumas vezes acaba lhes sendo atribuídas);

(3) as formas como o fazer e o dizer arte vem rearticulando várias destas questões: em leituras críticas que deslocam certos problemas para longe do palco centro europeu onde a crítica mais tradicional os colocava (um bom exemplo é Claire Bishop, em Artificial Hells — Participatory Arts and the Politics of Spectatorship); em certa continuidade interrompida entre este tipo de pesquisa (um exemplo de abordagem mais generalizado é o da arqueologia das mídias) e certos modos de pensar cultura e sociedade que sumiram como decorrência da guerra (Benjamin e Warburg são bons exemplos de pensamentos que já naquele momento buscavam formas de pensar alternativas ao “foco” no centro europeu). Será a tensão entre estes modos de ver conflitantes decorrente dos ânimos acirrados que justamente levaram às duas grandes guerras, numa Europa incapaz de assumir os conflitos de alteridades decorrentes de seu próprio de urbanização? Trânsito de descontinuidades e deslocamentos que reagrupam-se, fraturadas, em outros tempos e espaços.

 

[1]   Cf. Poggioli, Pierre. “O adeus às armas?” In: Le Monde Diplomatique, disponível em http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1740. Acesso em 8 de junho de 2015.

[2]   Cf. Lethen, Helmut. Cool Conduct. The Culture of Distance in Weimar Germany. Berkeley: University of California Press, 2002.

* o termo é usado por Sergio de Carvalho, no ensaio Brecht e a Dialética (incluído no terceiro volume de Pensamento Alemão no Século XX, coletânea organizada por Jorge de Almeida e Wolfgang Bader; Cosacnaify, 2013)