Há bastante literatura de interpretação do Brasil a partir dos efeitos de continuidade, desvios criativos e contrapontos às linhas de força tidas como formantes do país. De modo cujo aparente paradoxo explica-se pelo teor subtrativo resultante de reiterada “experiência do caráter postiço, inautêntico, imitado”[1], estas linhas de força surgem também em certos avessos, alteridades que representam possíveis oscilações, maiores ou menores, entre aspectos fortes e fracos na relação de brasileiro e estrangeiro, na medida em que ela delineia-se como resultado de experiência colonialista cuja duração estica-se para muito depois de encerrado o período colonial.

Um exemplo conhecido é a dialética da malandragem, em que Antonio Candido recusa a interpretação das Memórias de um Sargento de Milícias pela chave do romance picaresco. Ao fazê-lo, propõe uma maneira de compreender o livro de Manuel Antônio de Almeida pelo aspecto aspecto formal oscilante, que liga-se a um modo, encontrado na época do recente fim da escravidão, de alojar o homem livre num espaço intersticial entre ordem e desordem. E, assim, encontra também um fio condutor do escrever o Brasil que leva de Gregório de Mattos a Macunaíma e Serafim Ponte-Grande.

Dizendo com outras palavras a afirmação de Roberto Schwarz de que “a fidelidade realista das Memórias, se é que existe, não é da ordem do documento”, que ela seria uma “formalização estética de um ritmo geral da sociedade brasileira” — em todo caso, sinalizadora de aspectos que não deixam de ser problemáticos e crivados de elementos que suscitam um necessário espírito crítico[2] —, pode-se aventar aí uma intuição não dita de certa “renitente timidez formal”[3]. Seria preciso seguir com mais detalhe esta pista que aproxima leituras críticas da literatura e das artes visuais no Brasil.

Até que ponto seria possível encontrar uma abrangência maior na hipótese de que este déficit formal, que entretanto resulta num saldo de entendimento do contexto em que surge, liga certas obras de literatura e pintura no Brasil — e pode explicar algo sobre a centralidade e a grandeza da canção, numa cultura cujo letramento parece circular antes pelas páginas de jornal e ondas do rádio que pelo acúmulo de livros nas bibliotecas? Para não desviar do foco proposto na leitura de A Marcha das Utopias, de Oswald de Andrade, e O Voo de Lindbergh, de Bertolt Brecht, como avessos (entre si, na relação que estabelecem com os lugares e tempos em que escrevem-se, e na negatividade que representam diante destes lugares e tempos), coloca-se entre parêntesis essa possibilidade, que relaciona campos cuja amplitude obrigaria um esforço de leituras cruzadas por ora impossível.

Ficam como um resquício, a ser melhor investigado, desta questão, as lições repetidas de que, em obras importantes da literatura e da pintura brasileiras, certa timidez formal conteria seu próprio avesso. (Também o avesso de seus lugares e tempos, aquele antagonismo revelador das obras mais capazes de perturbar certos modos de ler seus mundos, e até dos modos de ler do que foi tido como metrópole e colônia, em tempos nos quais as direções de ambos não se inverteram mas de fato estilhaçaram-se em vetores cuja multiplicidade impede sobretudo pensar sobre centros e periferias).

Existiria, então, certa conveniência de habitar avessos, e assim um primeira explicação para o que se espera mostrar, neste texto, através de Oswald de Andrade e Brecht. Os dois autores atravessam os lugares e tempos em que escrevem, e ao fazê-lo revelam seus extremos, seus limites e as flechas para onde suas potencias apontam utopias em seguida desfeitas. E, avessos a estes lugares e tempos, também situam-se no limiar pouco nítido entre timidez e potência, não exatamente das formas que expressam, mas do quanto nelas estão contidas as contradições de países rapidamente alçados a uma modernidade que não suportam.

O avesso de um peso estabelecido por certo ocidente, que reiteradamente tem-se afirmar estar desaparecendo (em meio a posteridades de todo tipo, nestes tempos mal descritos pela alcunha de pós-modernos)… e que, no entanto, existe tanto quanto insite.

É curioso perceber como certas comunidades aguerridas, apesar de geralmente minoritárias, parecem capazes de canalizar sentimentos de exclusão de outro que podem rapidamente tornar-se um estranho consenso. O caso do Nazismo é o mais conhecido, mas vale apontar também o que aconteceu com a cidade de Selma, no Alabama, conhecida pelo desentendimento entre os membros do movimento pelos direitos civis que lá foram, sob liderança de Martin Luther King, protestar contra a exclusão dos negros do sistema eleitoral dos Estados Unidos. No livro Vida de Escritor, Gay Talese afirma: “é provável que nenhum outro lugar do Alabama tenha sido mais devastado pela guerra [civil entre o norte e o sul dos EUA] do que Selma, nem mais controlado por seus conquistadores nos dez anos de ocupação armada depois da guerra. Os brancos das cidade cultivaram um profundo e perene ressentimento, que se prolongou pelo século seguinte” (p. 155).

Não deixa de ser irônico que o projeto democratizante que houve em Brecht e Oswald de Andrade parece ter atingido um ponto inesperado. O acesso cada vez mais amplo e irrestrito a processos de produção e plataformas de publicação resulta em uma cultura em rede diluidora e ruidosa, em que certo exibicionismo histriônico parece tornar-se predominante.

Não é do escopo de um ensaio curto responder a uma indagação de fôlego como a que sugere um problema de fundo, a certo modo dialético, que torna certa produção cultural brasileira relevante pela ambiguidade que a liga ao mesmo tempo que destaca dos modos de fazer com que dialoga. Delineando, assim, um campo de tensão entre imitação e particularidade que não deixa de ser revelador do próprio modo hesitante com que o país procurar um trânsito que ora cola-se e ora afasta-se da marca colonialista.

Este problema é colocado de forma contundente pelas experiências mais afirmativas de certa alteridade paradoxal, como é o caso da antropofagia. Buscando colocar ainda mais contrapontos a este tecido já bastante saturados de linhas que embaralham as ordens e desordens em jogo, ao invés de remexer na direção esperada tais efeitos de continuidade, desvios criativos e contrapontos, este ensaio busca abordá-los de outra direção, levando a alteridade a limites de leitura que se poderiam dizer descolados. É o que se pretende ao discutir, pela chave de distâncias que na contramão do esperado revelam aspectos próximos, os contornos das obras de Bertolt Brecht e Oswald de Andrade — dialogantes em tantos aspectos quanto apartadas em vários outros.

Uma pista inusitada surge na já referida leitura que Schwarz faz do ensaio de Candido, quando afirma:

A transformação de um modo de ser da classe dominante em modo de ser nacional é a operação de base da ideologia. Com a particularidade, no caso, de que não se trata de generalizar a ideologia da classe dominante, como é hábito, mas a de uma classe oprimida. Com efeito, Antonio Candido identifica a dialética de ordem e desordem como um modo de ser popular.

Guardadas as diferenças óbvias, não seria possível indagar se a experiência de ascensão do nazismo não correspondente também a um fenômeno do tipo, em que certo ethos cultural típico em setores excluídos do controle social assumem um lugar central. É claro que no caso alemão isto acontece de forma mais complexa e excepcional, na medida em que os sentimentos de derrota na guerra e a rápida corrosão social igualam os lugares psíquicos de boa parte de uma população de repente tornada tábula rasa de si mesma.

Para além dos trânsitos por Brecht e Oswald de Andrade, o Brasil de hoje também parece tornar-se, rapidamente, tábula rasa de si mesmo, numa reversão dos gestos antropofágicos que buscaram reverter em utopias positivas seus aspectos não civilizados (no sentido ocidental hoje já superado, por exemplo, pelo perspectivismo). Todavia, se há também na barbárie um lado menos lúdico, e mais explicitamente violente, é preocupante o quanto, como na Alemanha que tornou-se nazista, há o risco do país fazer transbordar o que há de pior em seu avesso.

Um exemplo é a distância, muitas vezes mais retórica do que efetiva, entre certas interpretações da literatura nacional. Um caso conhecido é a hipótese de sequestro do barroco nas leituras que consideram o sistema literário surgido a partir do arcadismo — que não leva em conta a distinção clara entre um sistema literário complexo todavia não coincidente com a literatura propriamente dita, que organiza a premissa cujo desmonte assim perde algo do seu sentido.

[1] Cf. Schwarz, Roberto… Nacional por Subtração.

[2] Cf. Schwarz, Roberto… Pressupostos, salvo engano,….

[3] Cf. Naves, Rodrigo. A forma difícil…