excrever: elementos para uma arqueologia do remix

Ampliando a discussão sobre as formas como os elementos visuais tornam-se mais presentes na escrita contemporânea (conformado formulado, por exemplo, por Landow), o campo das imagens técnicas, em suas diferentes materialidades, permite entender de que forma foi se constituindo o sonho de uma escrita não-verbal, que tem nas práticas de remix um exemplo contundente, conforme discutido, por exemplo em ex-Crever. literatura, linguagem, tecnologia:

Esse universo [do remix] que pode ser descrito como um tipo de polifonia que escapa do verbal, foi discutido em diversas oportunidades por Arlindo Machado, ao submeter os estudos da fotografia e do cinema ao crivo dos pensamentos bakthiniano e eisensteineano, tanto no mais antigo A ilusão especular quanto no recente O filme-ensaio. Neste, Machado discute os fundamentos teóricos e analisa alguns exemplos da forma de escrita que, segundo ele, será predominante quando “as câmeras substituirem as canetas, quando os computadores editarem filmes em vez de textos”. Atualmente, esse trânsito fluído entre signos torna-se mais perceptível porque o código binário escreve signos sonoros, visuais e verbais sem diferenciá-los. Por isso, o desenvolvimento tecnológico em curso tende a culminar em uma cultura em que ‘reciclar’ imagens e sons será parte de um processo tão complexo e inconsciente quanto atualmente é complexo e inconsciente o processo de falar sobre a fala do outro ou de escrever sobre o que o outro escreveu. O número crescente de dispositivos tecnológicos parece tornar cada vez mais comum o diálogo entre seres possuidores de aparelhos de conversar por imagens, conforme descritos por Arlindo Machado em “As imagens técnicas: da fotografia à síntese numérica”, e de que o personagem do profeta de imagens em Enredando as Pessoas, de Éder Santos, é um bom exemplo (1).

Este processo de gradual substituição da cultura impressa, expresso em textos como The Acoustic Space, de Marshall McLuhan, em A Escrita e O Mundo Codificado, de Vilém Flusser, no já citado O filme-ensaio, de Arlindo Machado, ou no mais recente Media Archaeography, de Wolfgang Ernst, tem sido formulado reiteradamente. São abordagens distintas, que às vezes apontam a crescente importância do som (o que pode tanto significar um retorno à oralidade ou uma virada acústica, conforme o autor) ou das linguagens audiovisuais. Processos complexos como o descrito escapam de interpretações únicas, mas é impossível negar que, conforme as mídias digitais tornam-se cotidianas, o modelo forjado pela invenção da impressa sofre grandes modificações. Homens e mulheres, que há tempos atrás trocavam bilhetes e números de telefone e guardanapos ou nas contracapas de talões de cheques que eles eram obrigados a rasgar, hoje enviam fotos, pequenos vídeos ou áudios nem tão curtos, por meio de aplicativos de troca de mensagem em seus telefones celulares.

Uma número significativo de pesquisadores investe em formas de adensar o argumento sugerido ou formulado por autores como Warburg, Benjamin ou Flusser, de que é possível entender a história da cultura humana em função das tecnologias que predominam em suas diferentes épocas. Em uma conhecida entrevista que deu à TV alemã durante uma estadia em Osnabrück, na época do European Media Art Festival de 1988, Vilém Flusser leva às últimas conseqüências este tipo de abordagem (que ele também adota em livros como  A Escrita, mencionado acima, ou Filosofia da Caixa Preta; em ambos, ele discute a maneira como a impressão, as tecnologias e informática ou as imagens técnicas modificam a cultura de suas respectivas épocas). Com sua energia polêmica, Flusser é assertivo quando afirma que todas as revoluções da história humana podem ser associadas ao surgimento de certas tecnologias.

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Constatações do tipo não tem se restrito às pesquisas acadêmicas voltadas para a análise de longos processos de transformação cultural, como é o caso das abordagens propostas pelos autores citados acima. Em agosto de 2010, a revista Wired publicou um gráfico que demonstra o significativo aumento do tráfego de vídeo na Internet, a partir da seguda metade da década que inaugurou o século XXI. Mesmo que pesquisas deste tipo sejam circunstanciais, e que processos de tranformação cultural sejam muitas vezes longos (além de difíceis de serem detectados no momento em que se desenrolam), parece significativa a coincidência entre a perspectivas teóricas que advogam a superação da cultura impressa e os números publicados pela conhecida revista norte-americana apontando para novos hábitos de acesso ao conteúdo em rede.

Por mais que seja difícil prever o sentido destas modificações, ou como serão as linguagens do futuro que elas vão forjar, parece sólida a afirmação de que a cultura contemporânea não é tão centralizada na escrita como foram os últimos 500 anos (quando o parâmetro é a leitura proposta por McLuhan, que sugere a existência de uma galáxia de Gutenberg, ou seja de uma sociedade modificada pelo surgimento da impressa e a democratização do livro), ou mesmo os últimos 2000 anos (quando o parâmetro é a leitura proposta por Havelock, de que o surgimento da escrita inaugura a capacidade humana de formular pensamentos abstratos, algo que Flusser também sustenta quando associa o surgimento da escrita ao surgimento da história). Independente do critério adotado, hoje em dia, parecem menos utópicos os desejos de inventar discursos imagéticos e audiovisuais exercitados por pensadores como Benjamin e Warburg, ou cineastas como Eisenstein. Outro aspecto da pesquisa com as materialidades da imagem técnica é apontar quais os procedimentos de produção de sentido, neste contexto, o que pode ser feito tanto pela análise de exemplos relevantes quanto pelo desenvolvimento de projetos de experimentação procurando ampliar os repertórios existentes.

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