sobre epistemologia, retas e círculos

Qual a relação entre retas, círculos e as formas como os homens organizam seus conhecimentos? Em primeiro lugar, a própria capacidade de traçar retas e círculos implica em um conjunto bastante estruturado de saberes. A geometria, o campo de estudos que se ocupa das propriedades das formas, surge por volta do século VI aEC. Com Euclides, a geometria atinge uma abrangência resultante da constituição de um campo mais estruturado de saberes — isto já alguns séculos depois que Tales formula os primeiros problemas da geometria, então emergente na matemática. O campo da geometria se relaciona com a astronomia (como mapear a posição dos astros no céu?) e da cartografia propriamente dita (as coordenadas em um mapa são modelos geométricos usados para descrever a relação entre os continentes no território que ocupam).

Este mundo de retas e círculos sugere duas coisas: os homens tem necessidade de estruturar seu estar no mundo em meio a sistemas que organizam o fluxo das coisas; a forma como esta organização acontece pressupõe uma ordem cuja exatidão surge conforme as formas de descrição se aperfeiçoam. Não basta admirar as estrelas ou a lua, é preciso saber qual a posição delas em relação ao planeta terra, quais as distâncias entre umas e outras e como elas se organizam diante de nossos olhos; não basta saber com o céu e a terra se relacionam, é preciso inventar coordenadas e traçar retas e ângulos sobre mapas que mostrar como são os contornos da Europa, ou descobrir que o mundo é maior que a Europa, e inventar mapas mais complexos em que é possível entender a distância entre as Américas e a Ásia. O homem é incapaz de aceitar que exista acaso nestes espaços, todos possíveis de serem reduzidos a retas e curvas.

setaReta

setaCirculo

Neste mundo de formas e figuras modeladas por relações matemáticas, as pessoas aprendem a pensar em direções: uma reta é uma trajetória com início e fim; um círculo é uma trajetória que retorna a seu ponto de partida. Elas também aprender a medir distâncias, o longe e o perto, mas também distâncias que tem sentidos que escapam da própria geometria, o centro, a periferia. Quando os homens começam a levar a sério a ideia que que não há um Deus orquestrando a sinfonia do mundo, eles começam a conceber o espaço em que vivem como algo que inicia ao redor de seu corpo, o que os leva a acreditar que o a terra é o centro do Universo, que o homem é o centro dos Seres Vivos.

Não interessa, aqui, destrinchar como estas coisas acontecem, mas mostrar que os sentidos que as pessoas atribuem às figuras geométricas são estruturas de pensamento potente: através de ideias como as de reta ou círculo, as pessoas colocam-se no mundo de maneiras retilíneas ou circulares, e as próprias coisas que as cercam começam a adquirir maior retidão ou circularidade. E torna-se confortável explicar as trajetórias que as pessoas fazem, torna-se plausível descrever as figuras que as pessoas desenham, através destas ferramentas. De repente, aquele mundo inexplicável e confuso parece desvelar-se diante de olhos agora capazes de enxergar as estruturas geométricas por trás das coisas.

A história da ciência tem muitas explicações para a maneira como isto acontece. Seria valioso adentrar mais neste universo. Muita gente que escreveu sobre o século XX usou as mudanças na geometria (e nas ciências em geral) como pano de fundo para explicar as transformações do pensamento contemporâneo, com suas maneiras de descrever as formas e sólidos a partir de instabilidades que desafiam os preceitos euclidianos. De forma muito resumida, este contraponto entre dois jeitos de pensar geometria (o que sugere dois jeitos de explicar o mundo), aparece no conhecido texto O que significa estrutura aristotélica da linguagem?. Antes de discutir as conseqüências desta mudança, é preciso entender um pouco melhor do que tratam as retas e curvas que motivaram esta discussão.

gravity

A ideia de gravidade tem ingredientes geométricos: os corpos aderem à superfície da Terra em função de uma força que descreve uma trajetória rumo ao seu centro; a cola da gravidade é capaz de manter os infinitos grãos de areia que compõe o planeta e impedir que os corpos sob seu solo não escapem para fora de sua órbita, como resultado de um predomínio desta direção linear que puxa os corpos para o chão, sobre a direção circular de suas rotações e translações.

A reta: percurso, início e fim
A figura de uma reta contém, de forma sintética, três ideias principais. Uma reta descreve um percurso, um ponto de partida e um ponto de chegada. Uma reta depende de um início. Uma reta leva a um fim. A reta contém, desta forma, ideias como linearidade, sequencialidade e causalidade.

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Um exemplo de como a reta organiza as coisas de forma linear é o famoso timeline criado pelo casal Eames para a exposição Mathematica. Ao dispor um conjunto de informações na forma de uma linha que se desdobra no tempo, eles constróem um dispositivo poderoso em sua capacidade de mostrar como as coisas acontecem umas depois das outras. Mas, assim como a ideia de distância (quando é pensada como centro e periferia) pode assumir sentidos que escapam da geometria, o mesmo se dá no caso da ideia de reta. Este desdobramento das coisas através dos séculos contém, por exemplo, as ideias de progresso, de continuidade, até mesmo de causa e efeito.

Mesmo que esta não seja a única forma de interpretar os timelines, fica pressuposto em organizações como a da imagem acima ideias como:

_ com o passar dos anos, o conhecimento matemático evolui (pois sua trajetória se distância de seus primórdios e as pessoas se acostumaram com associações entre a passagem do tempo e o amadurecimento, por exemplo);

_ o que as pessoas sabem sobre matemática se acumula no tempo (os conhecimentos sobre números simples ganham a companhia dos conhecimentos sobre os números complexos, e assim continua a aventura de um campo de saber que aumenta com o tempo);

_ existe um encadeamento lógico entre os acontecimentos da história da matemática (a descoberta das formas tridimensionais só é possível depois de esgotados os conhecimentos sobre as formas bidimensionais; uma é conseqüência da outra).

Este tipo de representação que leva em conta o encadeamento temporal não é tão comum no design; demorou para surgirem, no campo do design, preocupações com a infografia e a arquitetura da informação, em que é preciso representar a passagem do tempo ou estruturas dinâmicas. Apesar das figuras da reta e do círculo, e de tudo o que suas geometrias sugerem em termos de direção e trajetória, o mundo das imagens não se ocupa do temo de forma tão explícita quanto a literatura.

Para Havelock, por exemplo, a escrita homérica é típica de uma época em que os homens começam a descrever ações, umas depois das outras. O trecho abaixo, da Ilíada, ilustra este tipo de escrita que descreve o encadeamento das coisas (o herói conduz a carroça para Nausica, seus irmãos cercam o veículo e o abastecem com a carga, Eurimedusa acende o fogo e cozinha, etc). Esta maneira de contar as coisas, reconstituindo a ordem dos acontecimentos, é uma das formas mais duradouras que os homens encontram para organizar seus pensamentos ou descrever as coisas que conhecem. Descontando a escrita sincopada, que tenta transmitir através do ritmo a grandeza da aventura vivida por Ulisses em seu retorno para Itaca depois da conquista de Troia, este jeito de contar as coisas persiste na história da cultura. Shakespeare, Goethe, Proust, mesmo autores como Joyce ou Sollers, que desafiam a retidão aparente dos fatos, por meio de sinuosidades da memória e do desejo (em personagens que descrevem as coisas a partir das descontinuidades de seus mundos interiores).

Ilíada

“o alfabeto converteu a lingua grega falada num artefato, deste modo, separando-a do locutor e tornando-a uma “linguagem”, isto é, um objeto disponível para inspeção, reflexão, análise. Adveio isto simplesmente de se criar uma noção de gramática? É certo que os gregos a princípio não tinham um nome para designar uma palavra isolada: apenas dispunham de termos variados referentes ao som da fala; e só no fim do século V, depois de quase trezentos anos de uso do alfabeto, as categorias sintáticas e as partes do discurso vieram a tornar-se um tema de análise. Mas algo mais profundo também estava a acontecer. Um artefato visível podia ser preservado sem recurso à memória. Podia ser recomposto, reordenado, repensado, a fim de produzir novas formas de declaração e de tipos de enunciação antes indisponíveis – por não serem facilmente memorizáveis. Se fosse para designar o novo discurso por uma palavra nova, o termo seria conceitual. A fala iletrada favorecera o discurso descritivo da ação; a pós-letrada alterou o equilíbrio em favor da reflexão. /…/ A história da escrita e da palavra escrita é com freqüência tratada de maneira simplista, como se o termo “escrita” designasse um única invenção que se realizou com efeitos mais ou menos uniformes desde o antigo Egito até a Europa moderno. Isto reflete o preconceito que pretende dividir a história inteira em duas épocas, a letrada e a iletrada. Na verdade, o termo “escrita” denota uma série de dispositivos tecnológicos que, independentemente dos materiais e instrumentos variáveis utilizados como suporte do escrito ou como meio de escrever, vieram a distinguir-se historicamente por conta de sua variável capacidade de cumprir sua função básica: a função de apoiar o usuário no ato de um reconhecimento (Havelock, p.57)

/…/ A enunciação oral e a palavra escrita são ambos atos, ou representam atos, que visam comunicar (Havelock, p. 58)

Em Dickens, Griffith e nós, Eisenstein mostra como esta maneira de organizar os acontecimentos parece mais duradouro do que a própria literatura. Com o surgimento do cinema, as pessoas começam aos poucos a se interessar por outras maneiras de acessar histórias, e os livros começam a perder o lugar central que ocuparam por tanto tempo. Mas isto não significa o fim deste contar que aparece (descontadas as diferenças de estilo e época) em Homero, Shakespeare, Goethe, Proust e (já de outra forma) em Joyce e Sollers.

VER TRECHOS SOBRE A DESCRIÇÃO E OS PERSONAGENS INTERCALADOS EM DICKENS E SUA RELAÇÃO COM O MODO DE NARRAR GRIFFITHIANO

A reta é a figura por trás de um outro tipo de timeline, que aparece nos softwares de edição de filmes (ou de música). A percepção do filme como algo que acontece em um percurso com início e fim não é evidente. Talvez pelo fato de que a tira de um filme só funciona quando enrolada em um carretel que gira suas imagens num ciclo que faz a projeção produzir uma ilusão de movimento e continuidade, o cinema não surge como algo da ordem da linearidade, sequencialidade ou causalidade. Mèliés, por exemplo, é conhecido pelos universos inverossímeis que seus filmes apresentam.

https://www.youtube.com/watch?v=DE-9Lzm8PBE

VER TRECHOS DE “AUDIOVISUAL AO VIVO: FEEDBACKS…” SOBRE MÈLIÉS

Mas, conforme o cinema se engaja no contar dickenseniano que Eisentein identifica na narrativa clássica, conforme os modos de encadear as coisas a partir da ordem de seus acontecimentos que a literatura explorou por séculos torna-se o modo dominante do fazer cinematográfico, a reta (na forma de uma linha do tempo) passa a ser sua principal figura de sentido.

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O timeline acima, de um documentário sobre o filme Os caçadores da arca perdida, compartilha muitas características com os do casal Eames em Mathematica. É um outro exemplo de que o passar dos minutos (ou anos) é uma forma poderosa de organizar e articular acontecimentos num jogo de sucessão e simultaneidade cujo resultado aponta sempre para as mesmas ideias de linearidade, progresso, desdobramento ou causalidade já apontadas. É claro que isto tudo é um pouco esquemático, e que em algum momento será preciso levar em conta a especialidade que estas formas contém (certamente seu aspecto mais evidente, aliás).

As figuras circulares contém, ao menos, duas ideias. A ideia de retorno, em que o ponto de chegada representa uma volta ao ponto de partida. A ideia de ciclo.

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A fita de Möbius oferece uma das representações mais fascinantes da circularidade. Esta figura estranha, que tem um lado apenas, mas se dobra em certo ponto do percurso, gera um sólido cuja topologia tem propriedades inusitadas. Por exemplo: uma linha desenhada sobre sua superfície vai encontrar seu ponto inicial “do outro lado da curva”. Não se trata da ilustra mais simples do conceito de ciclo, mas permite entender como o pensamento que diverge dos sentidos lineares das retas tem uma maleabilidade que permite ampliar significativamente as direções conhecidas.

PARENTESIS: O ARCO-IRIS NO AR CURVO, DE JULIO PLAZA (UM PERCUSO VIRTUAL PELAS QUALIDADES DE PENSAMENTO SUGERIDAS POR UMA FITA DE MÖBIUS)

É por isso que Derrida, por exemplo, formula a figura da elipse como uma forma de desconstruir o pensamento teleológico. A figura do círculo, especialmente as figuras de círculos com leves defasagens a cada ciclo, mudam completamente a forma como se pode pensar a passagem do tempo:

_ ao invés de levar a crer que as coisas evoluem, conforme se desdobram, as figuras de circularidade levam  à ideia de que o tempo gira sobre si, de que passado, presente e futuro são espirais que se entrelaçam, que as coisas “retornam” (no sentido que Nietzche empresta ao termo quando formula suas ideias sobre o eterno retorno ou explorações mais cômicas da ideia de circularidade, como no filme Feitiço do Tempo).

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!”.

_ ao invés de levar a crer que as coisas se acumulam, as figuras circulares sugerem emaranhado que gira sobre si próprio: voltando à história da matemática, torna-se possível pensar que uma ideia antiga tem elos com outra atual, sem implicações de continuidade ou progresso, senão de uma retomada que comporta passos para o lado, para trás, e toda sorte de desvio que leva sempre ao mesmo e não resolvido ponto;

_ ao invés de fazer supor um encadeamento lógico entre os acontecimentos, as figuras circulares permitem pensar em ligações transversais. A circularidade de um relógio só ganha sentido quando os ponteiros, que são retas, cruzam seu desenho, para indicar que horas são: seu trajeto ensina que é possível ligar quase todos os pontos entre si, e cada ligação sugere um novo sentido).

Mas há figuras menos complexas, que buscam representar apenas as voltas de um ciclo sobre si mesmo. Isto ficou bastante comum hoje em dia, nos diferentes ícones e animações usados para indicar o tempo de carregamento de uma página ou um clipe na Internet.

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Em outro sentido, a circularidade também é marcante no contemporâneo: desde o surgimento do samplers, figuras em loop tornaram-se uma das formas mais comuns de estruturar composições musicais e audiovisuais. Um som que repete um padrão curto e retorna para seu início, uma pequena coreografia de formas que se desdobra e em poucos segundos repete o mesmo percurso. Não é preciso pensar muito para lembrar de exemplos do tipo. O pensamento em loops atingiu tamanha penetração no modo de fazer as coisas, hoje em dia, que até mesmo estruturas de duração maior foram pensada a partir da figura do loop, como é o caso do clipe de Come into my World, dirigido por Michel Gondry.

Apesar dos poucos exemplos apresentados, é possível propor que o pensamento do século XIX e XX se estabeleceu a partir de figuras baseadas em retas, e o pensamento mais contemporâneo se estabeleceu a partir de figuras baseadas em círculos. Muita gente falou sobre esta passagem, usando termos como modernismo e pós-modernismo, estruturalismo e pós-estruturalismo, etc. Em outro momento, caberia cruzar este rápido levantamento sobre linguagens “das retas” e linguagens “dos círculos” com o que se pensou sobre estas passagens (que, nos exemplos acima, aliás, nem se referem aos mesmos intervalos de tempo). Em todo caso, parece claro que há uma forma de pensar teleológico, que predominou durante um bom tempo da cultura humana, e que ela vem sendo substituída por outros modelos.

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Lev Manovich, Visualing Temporal Patterns in Visual Media
http://manovich.net/index.php/projects/article-2009

Loops of Perception, Paul Miller (aka DJ Spooky)
http://www.horizonzero.ca/textsite/remix.php?file=3&is=8

Rhythm Science
http://www.rhythmscience.com