sterling: extensão colossal dos dispositivos distingue século 21 do século 20

texto de Marcus Bastos e Soraia Vilela, publicado originalmente na revista online do arte.mov – Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis http://bit.ly/bKkty8, seguido de entrevista com Bruce Sterling

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 detalhe da capa de Hacker Crackdown: um dos livros mais conhecidos de Sterling, lançado em formato impresso e eletrônico

Autor de livros de ficção científica, observador de tendências e “teórico do futuro”, Bruce Sterling é considerado uma das vozes mais perspicazes do século 21. Um dos principais mentores do ‘cyberpunk’ na década de 1980, continua sendo uma referência quando o assunto diz respeito a tecnologias no espaço urbano.

Mais de 30 anos após a publicação de seu primeiro livro, o escritor norte-americano defende uma nova ordem do pensamento sobre o tempo, além de insistir nos pontos de interseção entre futuro e história. Em recente debate, Sterling chegou a afirmar que “nos aproximamos de um tempo no qual nossa perspectiva de futuro torna-se cada vez mais sem significado”.

Pensador do tempo

No decorrer das últimas décadas, Sterling transitou entre campos teóricos que vão da teoria da linguagem e da história da mídia, passando pela Economia e Ecologia até o estudo das novas tecnologias – sempre movido pela discussão acerca do conceito de tempo.

Co-editor da Antologia Cyberpunk, ao lado de William Gibson, e cofundador da Electronic Frontier Foundation, Sterling envolveu-se com uma série de projetos ligados a teorias futuristas, entre estes o Dead Media Project, coletivo voltado para o estudo da obsolência de diversas mídias e para a criação de um arquivo de “tecnologias mortas”.

Antecipando tendências

Em 1992, Sterling, um dos pioneiros no lançamento de uma obra em formato eletrônico e de livre acesso, publicava na internet seu primeiro livro de não-ficção, o ‘e-book’ The Hacker Crackdown. Tematizando as atividades do serviço secreto norte-americano no combate à ação de supostos hackers, o livro marcou o início de uma preocupação e de uma discussão sobre vigilância eletrônica, que viria a se acirrar nos anos seguintes.

Mais uma vez, Sterling antecipava um debate de extrema relevância, provando sua capacidade de tratar das mais polêmicas tendências contemporâneas antes que elas se tornassem temas inerentes ao ‘mainstream’.

Ao comentar, por exemplo, em entrevista à Revista do Arte.mov, como sua produção literária antecipou os desdobramentos atuais da cultura em rede, Sterling se diz satisfeito ao observar como “ideias e práticas, que eram muito obscuras e de vanguarda, se tornam tão centrais que ninguém percebe mais” que elas um dia estiveram restritas apenas a um nicho de especialistas.

Tecnologia e meio ambiente

A ligação entre tecnologias e o meio ambiente também permeia a trajetória de Sterling, fundador do Viridian Design Movement, movimento estético-ambiental iniciado no ano de 2000 e baseado nas ideias de cidadania global, design ecológico e na busca de uma forma de consumo responsável.

Em seu romance Heavy Weather, de 1994, (Tempo Fechado, na tradução brasileira), Sterling já havia situado seus personagens em um tempo no qual as mudanças climáticas alteravam as condições de vida da maioria da população do planeta. Tomorrow Now: Envisioning the Next Fifty Years (2002), dissecaria, anos depois, as formas através das quais as tecnologias viriam a afetar nossa vidas.

De olho no futuro

Leia a seguir a entrevista do escritor à Revista do Vivo Arte.mov, na qual ele conta como os conceitos de realidade aumentada, informática urbana, webdesign, globalização em rede, crime computacional e novas estruturas de linguagem o interessam em particular.

E como “a extensão colossal dos dispositivos móveis é um fator bastante importante que distingue o século 21 do século 20”, já que estes adentram o mundo de forma mais rápida que os computadores pessoais. E isso mesmo considerando que esses dispositivos são efêmeros e fadados a serem vistos, um dia, como elementos nostálgicos: “como antigas canções populares em outros tempos, vistas em televisões preto-e-branco”, compara Sterling, mantendo-se fiel à sua peculiar tradição de não se esquecer do futuro.

Fazendo download de algumas idéias futuras

A entrevista a seguir, realizada pelo VIVO Arte.Mov, permite aprofundar um pouco mais as ideias de Sterling, como ponto-de-partida para conhecer seu universo e preparar-se para sua palestra no Festival, que acontece durante a edição de São Paulo, no final de Novembro (ver agenda para mais detalhes).

Vivo ARTE.MOV: De que forma a literatura cyberpunk antecipou os desdobramentos atuais da cultura em rede?

Bruce Sterling: É prazeroso ter vivido para ver um tempo em que temos generais cyberpunk e engenheiros cyberpunk… É satisfatório quando ideias e práticas que eram muito obscuros e de vanguarda se tornam tão centrais que ninguém percebe mais. Por exemplo, o ex-Ministro da Cultura Gilberto Gil teria sido um personagem cyberpunk extremo em um romance de ficção científica escrito em 1983, mas hoje em dia eu simplesmente o sigo no Twitter, e ninguém acha isso excepcional. De fato o Senhor Gil recentemente recomendou um site Alemão que estuda música Africana dos anos 1980, então imediatamente eu segui sua dica e fiz download de um monte de músicas Africanas do início dos anos 1980. No início da década de 80, quando o cyberpunk foi inventado, este cenário seria típico da ficção científica, quase impossível.

Vivo ARTE.MOV: Tecnologias como a realidade aumentada e pontos-de-acesso sem-fio contradizem as visões cyberpunk, na medida em que eles misturam mundos físicos e virtuais, enquanto a literatura cyberpunk era marcada por uma concepção éterea e incorpórea da Rede?

BS: Com certeza novos desenvolvimentos da Rede contradizem algumas visões cyberpunk, mas os escritores cyberpunk sempre foram cuidadosos para nunca serem muito consistentes. Nós nunca tentados nos apegar a uma linha de desenvolvimento futuro. Nós sempre previmos situações na forma de cenários possíveis. Eu nunca escrevi sobre pontos-de-acesso sem fio, mas eu costumava escrever bastante sobre realidade aumentada. Hoje, os técnicos profissionais de realidade aumentada frequentemente se contradizem. Ninguém pode ter certeza de qual a natureza de uma tecnologia jovem. A única certeza sobre a realidade aumentada é que ela muda rapidamente.

Vivo ARTE.MOV: Qual o futuro das tecnologias de rede ou, parafraseando o título de sua coluna na Wired: o que está além do além, em termos de tecnologia de rede?

BS: Eu presto bastante atenção aos desenvolvimento da Rede que são chamados de “Internet das Coisas”, “realidade aumentada”, “informática urbana”, assim como em webdesign, globalização em rede, crime computacional, e mudanças na estrutura da linguagem. Estas não são as únicas coisas importantes que estão acontecendo nas redes, mas elas me interessam em particular.

Vivo ARTE.MOV: Quais as principais formas de urbanismo existentes? Como elas remodelam as cidades? Qual o papel da tecnologia neste processo?

BS: Tenho certeza que existem muitas formas diferentes de urbanismo, e geralmente elas acontecem numa mesma cidade, ao mesmo tempo. Por exemplo, a maioria das pessoas faria distinções precisas entre apartamentos de elite blindados e favelas precárias e inseguras, mas eles normalmente coexistem e mesmo criam um ao outro. Alguns amigos meus argumentam que as cidades tem a escala adequada para criar formas importantes de rede que ainda não existem. Um vilarejo ou uma casa seriam muito pequenos e pobres para abrigar o verdadeiro urbanismo digital, enquanto uma nação seria muito grande e difusa. Então, talvez, veremos intensas novas formas de redes urbanas que se assemelham a outras infra-estruturas urbanas como água, energia e controle de tráfego.

Vivo ARTE.MOV: Você concorda que a sociedade contemporânea é definida pela mobilidade de seus dispositivos? Qual o significado da imobilidade física e social significam, no atual contexto de radical aumento de contrastes e exclusão?

BS: Eu concordo que a extensão colossal dos dispositivos móveis é um fator bastante importante que distinguem o século 21 do século 20. Dispositivos móveis penetraram o mundo de uma forma diferente, mais rápida, e por diferentes razões, que os computadores pessoais. Dispositivos móveis tem estruturas radicalmente diferentes de acesso e exclusão, mas eu não diria que eles definem a sociedade contemporânea. Celulares não duram o suficiente para isso — eles são muito temporários. É mais justo dizer que os celulares primitivos de hoje breve serão vistos como itens crus, nostálgicos, algo meramente anterior que já terá desaparecido, como videogames populares, ou antigas canções populares em outros tempos vistas em televisões preto-e-branco.

Vivo ARTE.MOV: Que aspectos de seu trabalho se relacionam com os temas do Vivo ARTE.MOV, um festival que cobre as áreas de arte para mídias móveis, artes locativas e audiovisual produzido com dispositivos portáteis? Que aspectos estão relacionados com o tema específico deste ano, “Novas Cartografias Urbanas”?

BS: Como aconteceu, fui curador convidado do Festival SHARE Festival em Turim, em 2008. Eu também criei um trabalho de arte eletrônica para o

Museu de Arte Contemporânea, em Los Angeles. Eu fui convidado para festivais de arte eletrônica como Ars Electronica, na Áustria e Gogbot, na Holanda. Mas eu não sou um artista eletrônico; eu sou escritor e crítico. Então, os aspectos reais do meu trabalho que envolvem estas formas de arte são escrever e falar sobre elas, e publicar meu blog, “Beyond the Beyond”.

O temas “Novas Cartografias Urbanas” tem recebido bastante espaço em meu blog, ultimamente. Há uma explosão de atividade inventiva recentemente, em torno das questões da “informática urbana” e realidade aumentado em espaços.

Vivo ARTE.MOV: O que você considera serem os aspectos positivos e negativos das tecnologias em desenvolvimento, como redes e aparelhos portáteis, levando em conta seus efeitos sociais, políticos e culturais?

BS: Eu percebi depois de anos de estudo que, em tecnologias profundas, os efeitos positivos SÃO geralmente os efeitos negativos. São os mesmos fenômenos técnicos, vistos e julgados em diferentes momentos. Tudo depende da passagem do tempo e dos ajustes da sociedade à tecnologia. Se eu abro uma torneira e sai água quente, isto é visto como bom. Se eu deixo a torneira aberta o dia inteiro e a água transborda o banheiro ensopa as pessoas escada abaixo, isto é visto como “ruim”, mas é a mesma torneira, a mesma água, a mesma tecnologia.

Água encanada é uma tecnologia maravilhos com uma série de benefícios, mas drenar rios inteiros para garantir águas nas grandes cidades é um aspecto negativo do crescimento desta solução bem sucedida.

Dispositivos de rede portáteis são ótimos, também, mas os servidores que alimentam seus dados consomem tanta eletricidade que cada um destes pequenos gadgets consome o poder efetivo de um refrigerador. Já que muitos servidores geram carvão, isto é ruim para a crise do clima.

Vivo ARTE.MOV: Como você enxerga a relação entre cultura corporativa e desenvolvimento tecnológico? Importa o fato de que muitas tecnologias importantes são, hoje em dia, desenvolvidas por grandes corporações que definam a forma como são construídas?

BS: Para um bom exemplo da sutileza desta situação, você pode estudar o processo recente de propriedade intelectual emitido pela Microsoft, contra a Motorola, envolvendo pagamento de infração de patentes em smartphones Android. Muita gente imagina que as grande corporações fazem bens de massa para consumidores de massa, e claro que isto vai definir seus produtos. Mas não é mais tão simples assim.

Não é apenas uma questão de grandes corporações contra a produção artesanal. Ainda que o Google seja uma grande corporação, o Android não é corporativo. O Android é um sistema operacional livre que a Google lançou para pertubar a Apple, a Nokia e a Microsoft. E a Microsoft não pode reagir atacando o Android diretamente, então a Microsoft ataca a Motorola. Estas manobras estranhas, ao estilo da Guerra Fria, vão certamente modelar a tecnologia, mas elas são muito mais complexas e decadentes do que a tecnologia costumava ser. Eu gosto de chamá-las de “Gótico High-Tech”. É importante que a gente aprenda que nossas tecnologias não são mais determinadas por distinções simples entre direita e esquerda, mas se tornaram barrocas e muitas vezes auto-destrutivas.

Links para conhecer mais sobre Bruce Sterling

Biografia de Bruce Sterling no site da European Graduate School (EGS) de Saas-Fee, na Suíça, onde o escritor coordena um seminário intensivo por ano. www.egs.edu/Faculty/Bruce-Sterling/Biography/

Beyond the beyond: Blog de Bruce Sterling www.wired.com/beyond_the_beyond/

Entrevista com Bruce Sterling por Rhys Hughes www.40kbooks.com/?p=1769

Keynote de Bruce Sterling na Transmediale 2010 www.transmediale.de/en/keynote-bruce-sterling-us-atemporality

Palestra de Bruce Sterling no Fórum de Inovação do Design Interativo interface.fh-potsdam.de/innoforum/english/09_video.php?vidName=769193

Entrevista com Bruce Sterling no Boing Boing www.boingboing.net/2010/06/14/bruce-sterling-inter-2.html