sentidos da multidão

“sabia que era impossível prever o humor da polícia, mais ainda do que entender as mudanças na psicologia das multidões
                                                                   j g ballard

abaixo, trechos de “Sentidos da Multidão”, capítulo do livro Sociotramas (org. Lucia Santaella).

É importante estabelecer, antes de tudo,
que a massa jamais se sente saciada.
Enquanto houver alguém que não se tenha deixado
apanhar por ela, 
ela demonstrará apetite.
(Elias Canetti)

O surgimento das redes sociais acontece em um contexto em que os processos distribuídos e o compartilhamento amplo e irrestrito transformam-se em dividendos. A tecnologia surge envolvida em paradoxo irônico: a sociabilidade em rede acontece antes pela aceleração e otimização de relações entre grupos de afinidade, em processos que permitem o mapeamento de padrões coletivos de comportamento, do que por um desejo de redesenho social, capaz de fomentar aproximações entre grupos que, de outra forma, nunca estariam próximos. O termo social, que já foi objeto de estudiosos do porte de Durkheim e Weber, parece deslocar seu campo semântico, assumindo um sentido mais próximo ao da expressão jornalística “coluna social”. A internet coloca ênfase nos aspectos superficiais dos relacionamentos, invertendo de forma curiosa um contexto tecnológico com potencial inédito para modificar a dinâmica das trocas. Quantidade e adesão parecem definir a tônica da Web 2.0.

O problema é que a as mecânicas quantitativas das redes sociais obscurecem outros aspectos dos relacionamentos, e estabelecem padrões de comportamento a partir de um universo refratário à crítica, que transforma a visibilidade a qualquer custo em valor. Não por acaso, constatando que “a internet se tornou uma luta corporativa por amigos informacionais”, Christopher Salter (2012) afirma que “o facebook não foi criado pelo departamento de defesa dos Estados Unidos, mas poderia muito bem ter sido”. Como em um panóptico compartilhado, nas redes sociais todos estão sob os olhos de todos. Por outro lado, diante do volume de conteúdo e do acesso conforme o conjunto de ligações do usuário, ninguém apreende o conjunto do que é publicado (a não ser, como afirma Trebor Scholz em artigo que será retomado adiante, as empresas que detém os bancos-de-dados das redes sociais).

 Mesmo que o sonho de uma mídia democrática — em que todos os segmentos de público poderiam conviver e trocar informações, em ambientes dedicados a interesses específicos, tratados com densidade inédita — não seja reconhecível nos serviços mais acessados na rede, acontecimentos como a Primavera Árabee o Ocuppy Wall Street e serviços como o Wikileaks demonstram como os usos das tecnologias são imprevisíveis, e podem ser subversivos em relação aos propósitos de seus criadores. Há uma contradição explícita e sem precedentes entre os setores engajados na construção de um espaço público articulado através de tecnologias de informação compartilhadas (Cf. http://www.situatedtechnologies.net/), e uma maioria de usuários interessados na web como uma forma de difusão de entretenimento.

 Num mundo em que dicotomias como direita e esquerda são insuficientes para explicar a complexidade existente, as duas perspectivas apresentadas acima não são necessariamente excludentes. O espaço virtual surge como esse lugar em que as fulgurações momentâneas que desorganizam o espaço físico, e rapidamente desaparecem, talvez possam encontrar durações mais prolongadas (e construir esferas públicas virtuais capazes de substituir a lacuna resultante dos processos reiterados de privatização das economias ao redor do mundo). Neste sentido, é curioso perceber como certas experiências com realidade aumentada propõem formas de reconstruir espaços urbanos, inventando mundos paralelos que desestabilizam a rotina de formas sutis. Sterling já foi descrito como o escritor mais capaz de demonstrar como o fantasma nas máquinas são os próprios usuários. E a realidade aumentada parece sugerir uma narrativa de embate indireto. Ao contrário da desconstrução sistemática dos hackers, os sistemas de realidade aumentada permitem um desvio constante e gradual. Entretanto, surgem num contexto de cerceamento cada vez mais intenso das redes.

Esse retorno a uma relativa centralização, quando se compara a Web 2.0 com a primeira Internet, não anula a contribuição das tecnologias digitais para o processo de diversificação do que é publicado, ou sua capacidade de fomentar experiências inéditas de compartilhamento e colaboração. As já citadas plataformas de código ou conteúdo aberto e os circuitos de microcinema são bons exemplos desta democratização. Por outro lado, os serviços em rede mais populares sugerem o surgimento de um formato composto, de fenômenos massivos distribuídos. Eles atingem escalas planetárias nunca imaginadas pelas redes de TV mais ambiciosas (mas, ironicamente, presente em projetos de perspectiva mais experimental, como Good Morning Mr. Orwell, de Nam June Paik). Este aparente paradoxo também é um aspecto das misturas que marcam a cultura em rede, ainda que a circulação ampla de formatos experimentais não signifique necessariamente que seu ethos desconstrutivo seja compreendido. É um fenômeno identificado tanto por intelectuais como o canadense Joseph Heath, que discute como a contracultura se transformou em produto (ver Bastos, 2004), quanto por músicos de sucesso como Kurt Cobain (Em In Bloom, ele ironiza o público que transformou sua banda, o Nirvana, em megassucesso. A letra diz: “Ele é o cara que / gosta de todas nossas canções bonitas / E gosta de cantar junto, mas / Não sabe o que significa / Não sabe o que significa / A mensagem”)

 É importante, para entender os fenômenos da Web 2.0, e especialmente das redes sociais, averiguar essa tendência a combinar elementos das mídias especializadas com formatos de difusão em escala planetária (instalando este lugar em que o estímulo à participação é neutralizado pela forma com que acontece, como no caso do cara que gosta das canções bonitas cuja mensagem não entende, na música do Nirvana). É um aspecto da cultura em rede que parece remeter ao desejo coletivo de pertencimento, à tendência que os seres humanos têm de estabelecer elos e forjar espaços de sociabilidade e identificação. O antropólogo Elias Canetti (1995) descreve este impulso como algo que faz o corpo vibrar de forma visceral, e que remete ao surgimento do próprio humano. Canetti descreve o temor de ser tocado pelo outro como algo intrínseco ao homem, um instinto que garante proteção, mas que também estabelece distâncias e barreiras cujo objetivo é interditar tudo o que parecer estranho ao corpo.

Canetti localiza, na inversão desse temor de ser tocado, a força motriz que origina a massa, um espaço cujo vigor e homogeneidade estão baseados na sensação de partilhar, com um grupo grande e coerente, sentimentos que atingem tamanha adesão por atuarem em arquétipos cuja amplitude sobrepõe-se a eventuais diferenças. Estas só farão sentido quando o grupo se separar, desaparecendo a sensação de catarse. Basta pensar numa torcida de futebol, que iguala classes sociais, profissões e perfis dos mais diversos em torno de um impulso comum. Outra característica da massa é a emergência de comportamentos viscerais, caóticos, até mesmo violentos. Não por acaso, a torcida de futebol pode se tornar uma multidão descontrolada e destrutiva. Clifford Stott e John Dury (2012) desenvolveram pesquisas que buscam entender estas dinâmicas, investigando até que ponto “a construção de estereótipo e de consenso pode ser afetada por diferentes contextos intergrupo” e até que ponto “os estereótipos resultantes estão ligados à ação social”. Um questionamento análogo seria válido para os tipos de interação estabelecidos em espaços virtuais.

A grande diferença, ao menos em primeira análise, entre a massa constituída no espaço público, e as multidões que se formam nas redes, é justamente a ausência da fisicalidade que a transforma numa horda desorganizada. Os elos estabelecidos não surgem em decorrência da partilha de um espaço ocupado, ainda que possam provocar encontros de duração e escala variáveis em espaços físicos. Em função da característica distribuída das redes, os grupos nela emergentes constituem formas dispersas de aglomerado (algo só possível neste momento em que a telepresença tornou-se comum a ponto do sentimento de companhia não estar mais atrelado à presença física). Usuários de sites como o MySpace ou o Youtube, por exemplo, conectam-se por afinidades e nem sempre estabelecem contato pessoal, tampouco travam conhecimento físico. Em redes sociais como o Facebook, isto já é um pouco diferente, na medida em que uma parte significativa dos usuários usa seu perfil para manter contato com pessoas que conhece pessoalmente ou, pelo menos, que pertencem a um círculo de conhecidos. Seria interessante pesquisar melhor estas diferenças, assim como a adesão que cada uma dessas redes adquire nos diferentes países, em função dessas diferenças.

Impregnada desta lógica resistente à heterogeneidade, a atual produção em rede organiza-se a partir do consenso. Independente da velocidade com que acontece, o conteúdo que circula pelos sistemas de auto publicação da Web 2.0 tende à homogeneidade, mesmo que difusa na aparente diversidade. O efeito é semelhante ao da arquitetura barroca, em que a suntuosidade do conjunto resulta, em parte, da multiplicação de detalhes. Existe algum fundamento, mesmo que levemente deslocado, nesta comparação em outros aspectos curiosa. A chamada cultura pós-moderna, supostamente superada com o surgimento da cultura digital, chegou a ser descrita por Omar Calabrese (1988) como uma idade neobarroca. Vale lembrar, também, que a arquitetura barroca é conhecida pela demanda de um esforço coletivo desmesurado, algo que pode ser relacionado com o funcionamento de sites como o Facebook e o Twitter. Muita gente posta coisas breves, mas o que faz diferença é o conjunto. Tudo parece igual, mas com paciência é possível identificar o diferente.

Por um lado, é possível pensar que a “Rede Social corporativa nos molda em nossa imagem. Estamos sendo trabalhados, esculpidos aos poucos. Estamos nos tornando marcas. Não estamos apenas na Rede Social, mas estamos nos tornando ela” (Cf. Scholz, Trebor. Cautionary Note on Social Media. Em http://theory.isthereason.com/?p=2258). Por outro lado, o ano de 2011 foi marcado por uma série de protestos que parecem comprovar o potencial que a rede tem para rearticular aspectos do mundo físico. Em entrevista feita para este artigo, Vanessa Zetler, uma das participantes do movimento Occupy Wall Street observa:

“Após o ano de 2011, se tornou um senso comum citar as redes sociais e a tecnologia 2.0 como essenciais para as novas formas de manifestação social que estão ocorrendo, e é a mais pura verdade. Como dito na matéria da revista Wired, as redes sociais podem mesmo criar uma espécie de consciente coletivo que guia uma multidão. Eu vi isso acontecer no Occupy Wall Street. Sendo um movimento sem líderes, a profusão de mensagens e informações na web foi o que moldou muitas das ações do grupo.” (Entrevista concedida ao autor, para inclusão neste artigo.)

Zetler pondera, no entanto, que é imporante “salientar que a ação presencial, física, nunca será substituída pelo ativismo online. Como dizem muito na OWS, a ação da desobediência civil é a de posicionar seu corpo onde suas intenções estão. Há muito que pode ser feito online, como o grupo Anonymous e muitos outros Hackers fazem, mas, na minha opinião, uma multidão de gente expressa algo simbolicamente e efectivamente de maneira insubstituível”. O paradoxo das redes contemporâneas é justamente o de mudar o sentido tanto da massa quanto da multidão. Por um lado, elas tornam homogêneos os desejos coletivos. Por outro, modelam formas de ação que visam justamente instalar a divergência. Em algum lugar no meio situa-se a vocação da rede, o que só comprova a complexidade desta tecnologia que, não obstante, tem caminhando em rumos cada vez mais centralizados que negam sua configuração inicial de espaço sem fronteiras e hierarquias.


notas para aula sobre o tema, ampliando a arqueologia das multidões e inserindo fotos que mostram como elas se configuram / mudam

O surgimento das cidades, no final do século XIX, muda o sentido que se atribui à multidão. Os aglomerados de gente, em geral, tinham um sentido bélico que remota às maltas de guerra descritas por Elias Canetti, em Massa e Poder:

Em seu livro, Canetti apresenta um levantamento de fôlego de comportamentos comuns em formas de organização social de várias épocas e lugares, sempre com um formato mítico anterior às formas racionais de explicação que a sociedade moderna consolidou. O texto de Canetti é um mosaico impressionante de práticas que demostram os mais diferentes tipos de violência intrínsecos aos modos de relacionamento entre homens quando não regidos por leis fortes que impedem comportamentos que, não raro, tendem à barbárie. A intuição de Canetti em relacionar estes impulsos viscerais ao desejo de constituir-se em massa, é apenas o ponto-de-partida para seu escrutínio denso dos comportamentos sombrios de homens de todos os tempos.

Mesmo sob contratos sociais “fortes”, o surgimento da multidão corresponde sempre à uma irrupção que subverte o cotidiano, seja com propósitos políticos (uma passeata), hedonistas (o carnaval) ou arruaceiros (um arrastão).

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Multidão ocupa área em frente à Assembleia Legislativa do Rio durante a Passeata dos Cem Mil, marco da luta pela redemocratização do país. Foto: Agência O Globo-26-6-1968

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Vista aérea do Carnaval de Salvador (foto publicada em http://bit.ly/10OHfBo)

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Arrastão na Praia de Itapuã (foto publicada em http://bit.ly/o6nah2)

_as ruas de paris em 1789 e 1848 (cena final de Marie Antoniette)

_as ruas de paris em maios de 1968 (cenas de Cinélutte: Bonne Chance, La France, do coletivo Cinélutte, e A Chinesa, de Jean-Luc Godard)
_recclaim the streets e os dias de ação global (cenas iniciais de Surplus – Terrorized into being consumers, de Erik Gandini)
_occupy wall street
_primavera árabe

http://www.metamute.org/editorial/articles/rioting-reason-england-to-sweden-and-back-again

_as ruas de paris em 1789 e 1848 (cena final de Marie Antoniette)
_as ruas de paris em maios de 1968 (cenas de Cinélutte: Bonne Chance, La France, do coletivo Cinélutte, e A Chinesa, de Jean-Luc Godard)
_recclaim the streets e os dias de ação global (cenas iniciais de Surplus – Terrorized into being consumers, de Erik Gandini)
_occupy wall street
_primavera árabe

http://www.metamute.org/editorial/articles/rioting-reason-england-to-sweden-and-back-again

https://www.facebook.com/photo.php?v=472402239509898