o estilhaçamento da página impressa: grafismo e polifonia

trecho do prefácio de Un Coup de Dés
(tradução de Haroldo de Campos)

“Gostaria de que esta Nota não fosse lida ou que, apenas percorrida, fosse logo esquecida; ela ensina, ao Leitor hábil, pouca coisa situada além de sua penetração: mas pode perturbar o ingênuo que de lançar os olhos para as primeiras palavras do Poema, a fim de que as seguintes, dispostas como estão, o encaminhem às útlimas, o todo sem novidade senão um espaçamento da leitura. Os “brancos” com efeito assumem importância, agridem de início, as versificação os exigiu, como silêncio em derredor, ordinariamente, até o ponto em que um fragmento lírico ou de pouco pés, ocupe, no centro, o terço mais ou menos de uma página: não transgrido essa medida, tão-somente a disperso. O papel intervém cada vez que uma imagem, por si mesma, cessa ou recede, aceitando a sucessão de outras, e como aqui não se trata, à maneira de sempre, de traços sonoros regulares ou versos — antes, de subdivisões prismáticas da Idéia, o instante de aparecerem e que dura o seu concurso, nalguma cenografia espiritual exata, é em sítios variáveis, perto ou longe do fio condutor latente, em razão de verosimilhança, que se impõe o texto.

(fonte: Campos, Augusto de; Campos, Haroldo de; Pignatari, Décio. Mallarmé. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1991)

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Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, encaminha-se para o seu fim. Como se vislumbrando, no âmago da cristalina construção de sua escritura certamente tradicional, a vera imagem do vindouro. Mallarmé no COUP DE DÉS reelaborou pela primeira vez as tensões gráficas do reclame na figuração da escrita (Schriftbild) /…/ A escrita, que tinha encontrado asilo no livro impresso, para onde carreara o seu destino autônomo, viu-se inexoravelmente lançada à rua, arrastada pelos reclames, submetida à brutal heteronimia do caos econômico. Eis o árduo currículo escolar de sua nova forma. Se, ao longo de séculos, pouco a pouco, ela se foi deixando deitar o chão, da ereta inscrição ao oblíquo manuscrito jazendo na escrivaninha, até finalmente acamar-se no livro impresso, ei-la agora que se reergue lentamente do solo. O jornal quase necessariamente é lido na vertical — em posição de sentido — e não na horizontal; filme e anúncio impõem à escrita a plena ditadura da verticalidade. E antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, terá desabado sobre os seus olhos um turbilhão tão denso de letras móveis, coloridas, litigantes, que as chances de seu adentramento no arcaico estilo do livro já estarão reduzidas a um mínimo. Nuvens de letras-gafanhotos, que já hoje obscurecem o sol do suposto espírito aos habitantes de metrópoles, tornar-se-ão cada vez mais espessas, como a sucessão dos anos /…/ E o livro, hoje, como o atual modo de produção científica o demonstra, já é um mediador antiquado /…/ Pois tudo o que é essencial encontra-se no fichário do pesquisador, que o redigiu, e o intelectual, que o estuda /…/ Antes, chega o momento em que a quantidade se transforma em qualidade, e a escrita, avançando cada vez mais fundo no domínio gráfico de sua nova e excêntrica figuralidade, conquista de súbito os seus adequados valors objetais (Sachgehalte). Nesta escrita icônica (Bilderschrift), serão expertos da grafia (Schriftkundige), somente poderão colaborar se explorarem os domínios onde (sem muita celeuma) se perfaz sua construção: os do diagrama estatístico e técnico. Com a fundação de uma escrita de trânsito universal, os poetas renovarão sua autoridade na vida dos povos e assumirão um papel em comparação com o qual todas as aspirações de rejuvenescimento da retórica parecerão dessuetos devaneios góticos”

 

trecho de A língua percebida externamente
(Flusser, Vilém. Lingua e Realidade. p. 40-1)
“As palavras que chegam até nós através dos sentidos vêm organizadas. São agrupadas em obediência a regras preestabelecidas, formando frases. Quando percebemos palavras, percebemos uma realidade ordenada, um cosmos. O conjunto de frases percebidas e perceptíveis chamamos de língua. A língua é o conjunto de todas as palavras percebidas e perceptíveis, quando ligadas entre si de acordo com regras preestabelecidas. Palavras soltas, ou palavras amontoadas sem regra, o balbuciar e a ‘salada de palavras’, formam a borda, a margem da língua. São os extremos caóticos dos cosmos da língua. O estudo da língua tal como é percebida equivale à pesquisa de um cosmos. Dada a nossa definição da realidade como conjunto de palavras e de palavras in statu nascendi, é o estudo da língua possivelmente a única pesquisa legímita do único cosmos concebível.

Os elementos do cosmos da língua são as palavras. Correspondem a átomos dentro do cosmos democritiano, ou às mônadas dentro do cosmos leibnitziano. São percebidas como aglomerados de sons (quando ouvidas) ou de formas (quando lidas). São, portanto, divisíveis, tal como os átomos da física. Além de percebidas, são as palavras apreendidas. Como tais, são indivisíveis.”

Um dos vetores da arqueologia do mundo em rede aqui proposta é o estudo das formas de granularidade da linguagem, que expande o modelo de átomos-linguagem. Na passagem das culturas analógicas para as digitais, acontece uma mudança importante: a linguagem torna-se mais porosa, na medida em que se converte em algoritmo; plasmar texto não depende mais de uma matriz sólida que duplica as palavras; plasmar imagens não depende mais de um negativo que decalca por meio de luz os contornos do mundo; plasmar sons não depende mais do atrito entre corpo e instrumentos que vibram freqüências.

trecho de Passangerwerk que expande a analogia entre linguagem e cosmos / átomo presente também em Mallarmé e Flusser
(Benjamin, Walter. The work of the Arcades.p 463 – [N3,4])
“… this work — comparable in method to the process of splitting the atom — liberates the enormous energies of history that are bound up in the ‘once upon a time’ of classical historiography”

trecho de A doutrina das semelhanças em que Benjamin discorre sobre o tema das constelações (outra configuração usada para se referir ao Lanc de Dados, muitas vezes descrito como um poema-constelação)
(Benjamin, Walter. A doutrina das semelhanças, in Obras Escolhidas – Magia e Técnica / Arte e Política. p. 109)
“… o universo do homem moderno parece conter aquelas correspondências mágicas em muito menor quantidade que o dos povos antigos ou primitivos. A questão é se se trata de uma extinção da faculdade mimética ou de sua transformação. Embora indiretamente, a astrologia pode sugerir alguns indícios sobre essa metamorfose. Investigando as antigas tradições, podemos imaginar que certas configurações sensíveis tenham sido dotadas de características miméticas de que hoje não podemos suspeitar. As constelações são um exemplo.

Para compreendermos esse exemplo, temos que conceber o horóscopo como uma totalidade espiritual, cuja análise cabe à interpretação astrológica (a posição dos astros constitui uma unidade típica, e as características dos planetas individuais somente podem ser percebidas pela sua influência nessa posição).

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“Alors qu’il précise à Barres le 10 septembre 1885 que le seul Drame à faire est celui de l’Homme et the l’Idée, deux moins plus tard il expose à Verlaine l’essentiel de son programme: un livre, et même plutot le Livre, ‘explication orphique de la Terre’, architectural et prémédité, dont il aimerant montrer, avant de disparaître, ‘un fragment d’exécuté’.”
/…/
Eu régard à ce programme, l’Ouvre de Mallarmé telle que nous la connaissons aujourd’hui apparaît singulièrement incomplète. Seul le Coup de Dés, imparfaitement donné dans la revue internationale Cosmopolis et corrigé sur maintes épreuves, mas jamais imprimé par Firmin-Didot pour l’édition Vollard, semble l’avoir manifestée in extremis.
(Jean-Luc Steinmetz, Le mirage de l’ouvre – Magazine Littéraire [Dossier Mallarmé])

trechos de: Luce Abélès, La fabrique d’un recueil: les maquettes de Mallarmé – Magazine Littéraire [Dossier Mallarmé]

“Mallarmé se montrer déjà particulièrement attentif à la présentation visuelle de des poèmes: ‘Je voudrais’, soulignait-il, ‘un caractère assez serré, qui s’adaptât à la condensation du vers, mais de l’air entre le vers, de l’espace, afin qu’ils se détachent bien les uns des autres, ce qui est nécessaire encore avec leur condensation.’ (lettre à Catulle Mendés, 24 avril 1866, relative à sa contribuition au Parnasse contemporain).

“Je trouve le tout beaucoup trop compact: ma façon d’écrire requiert de l’espace et qu’on me lise aisément, que cela se détache enfin même et d’abord à l’oeil” (Album de Vers & Prose, 1887)

“la fabrication du livre, en l’ensemble — qui s’épanouira, commence dès une phrase. /…/ Ainsi je méconnais le volume et un merveille, imaginer tel motif en vue d’un endroit spécial, page et la hauteur, à l’orientation de jour la sienne ou quant à l’ouvre” (Le livre, un instrument spirituel / La Reveu Blanche, 1er juillet 1895)

“Ces maquettes adoptent toujours le même principe de présentation: sur des feuilles vierges de même format, numérotées au crayon rouge, sont collés des textes découpés dans les journaux ou les revues où ils ont paru, corrigés dans les marges et classés dans l’ordre annoncé par la table des matières.”
/…/
Le soin toujours plus attnetif que Mallarmé apporte à l’elaboration de ses maquettes témoigne de l’importance croissante que l’écrivain attache à la indissociable de son contenu. En ce sens, les maquettes de Mallarmé apparaissent comme les prémisses de l’ouvre ultime, Un Coup de dés, suivant la formule de Valéry, ‘l’essentiel dans le poème réside dans la distribuition du text sur la page’ (lettre à Ambroise Vollard (?) au sujet de la publication du Coup de dés, vers 1901-1902).”

Trecho de Einbahnstrasse, de Walter Benjamin
(tradução de Haroldo de Campos)
“Nosso tempo está como que em contraposição frontal à Renascença, e especialmente em contraste com a conjuntura em que foi inventada a arte da imprensa. Casualidade ou não, o surgimento desta na Alemanha ocorre na época em que o livro, no sentido eminente do vocábulo, o Livro dos Livros na tradução da Bíblia por Lutero, torna-se um bem do domínio público.

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“… o marco divisório da linguagem poética de invenção, na modernidade, é a obra Un Coup de Dés de Mallarmé (1897)” (Augusto de Campos, em Questionário do Simpósio de Yale sobre Poesia Experimental, Visual e Concreta desde a década de 1960) — http://www2.uol.com.br/augustodecampos/yaleport.htm

 

Un coup de dés jamais n’abolira le hasard (@ Electronic Literature Directory) http://directory.eliterature.org/node/573