O recorte estabelecido para apresentar as obras listadas abaixo é o da difusão de som (anterior e mais rara) e das projeções no espaço público. A organização em cronologia tem várias vantagens, e outras tantas desvantagens. Ela permite entender como certos procedimentos surgem e ganham densidade, em relação aos contextos que lhe oferecem pressões e possibilidades. A leitura literal, todavia, pode estimular um discurso de pioneirismo que interessa pouco, pois produz uma impressão equivocada de que houve um desenvolvimento linear, de causas e conseqüências. Observadas com atenção, tomadas como uma ferramenta de apoio e não como um mapa absoluto, as linhas do tempo ajudam a compreender como cruzam-se desdobramentos ocorridos em vários campos, levando a transversais inesperadas. Sem o devido cuidado, deixam de lado a análise das obras e a interpretação dos fatos que listam, o que leva ao risco de compreensões limitadas, empobrecedoras.

A cronologia proposta a seguir tem um caráter de pesquisa, de constante levantamento e reformulação. Menos que um percurso linear e definitivo, ela propõe um campo de possibilidades, a partir de onde são possíveis leituras críticas diversas. Este pequeno texto, por exemplo, sugere uma destas possibilidades, pelo viés do estilhaçamento do ponto-de-vista com que as pessoas se relacionam com sons e imagens, que vai resultar numa busca por formas de espacialização, em diálogos com o contexto e com a tridimensionalidade. É um campo de intersecção entre artes visuais e audiovisual, o que explica certas ênfases adotadas — por exemplo, o interesse maior em trabalhos com luz, laser e vídeo, e a pouca atenção ao grafite. Mesmo assim, houve alguma liberdade ao inserir exemplos que permitem entender um contexto mais amplo da relações entre as artes, o audiovisual e o espaço urbano.

Em See this Sound, livro organizado por Dieter Daniels e Sandra Naumann, fica claro de forma antes não organizada um campo de audiovisualidades divergentes, marcado pela distância dos formatos narrativos e pelo interesse em modos de exibição diversos da sala de cinema. Claro que há muita bibliografia sobre temas do tipo, em textos sobre cinema experimental, sobre sinestesia, sobre <em>visual music</em>, sobre videoarte ou sobre performance audiovisual. Mas o livro de Naumman e Daniels é um dos poucos a relacionar estas áreas dentro de um escopo mais abrangente, que permite pensar a ideia mais ampla de audiovisual, hoje bastante adotada.

Um dos aspectos que a cronologia abaixo deixa entre parêntesis é a discrepância entre a forma como estas experiências acontecem, em diferentes países. Na Europa, por exemplo, as feiras e exposições internacionais, que foram bastante comuns até o período das grandes guerras, proporcionaram condições de pesquisa e experimentação com tecnologias emergentes e abordagens multidisciplinares — no entanto muitos vezes associadas à um discurso de progresso que se mostrou problemático. No Brasil, onde processos de urbanização ganham impulso no pós-guerra, os exemplos começam a aparecer a partir dos anos 1970. Assim como nas experiências que nos Estados Unidos e Canadá ficaram conhecidas, desde o final dos anos 1960, como cinema expandido, são intervenções já inseridas num pensamento de crítica ao campo institucional das artes.

Apesar de considerar abertos os inícios do cinema expandido, em seu texto sobre o tema Marc Glöde não deixa de apontar exemplos que se aproximam daquilo que ficou relacionado ao termo nos anos 1960. A continuidade entre as experiências que ele aponta como precursoras e os ambientes de audiovisual em telas múltiplas como por exemplo o domo de Stan Van der Beek não é exata, como ele mesmo deixa claro ao falar em inícios abertos. Em síntese, ele se refere a processos em que a relação entre arquitetura e imagem em movimento é estruturante da experiência. Ele cita exemplos como o monumento de ferro, em que Bruno Taut criou um domo para a projeção de filmes, na Exposição Internacional de Arquitetura, de 1913, e o Totaltheaters concebido por Walter Gropius e Erwin Piscator, em 1927.

Este tipo de construção reflete, com os recursos da época abordada por Glöde, abordagens ao espaço construído enriquecidas por elementos sonoros e visuais que remonta (pelo menos) às construções de Gottfried Semper em parceria com Richard Wagner, que enfim tornarão possível a construção do Festspielhaus — e sobre as quais vale questionar em que medida o arquiteto influenciou sem o devido crédito o conceito de gesamtkunstwerk —, e continuará em estruturas já mais explicitamente pensadas em função das articulações de linguagem que proporcionam, como é o caso do Pavilhão Philips. Este retorno às relações entre espaço construído e o uso de imagens, sons e vídeos é bem desenvolvido neste artigo de Dudu Tsuda a respeito do tema.

Diante do entendimento um pouco difuso do conceito de cinema expandido, é possível abranger este tipo de construção que, todavia, parece mais ligada às possibilidades cada vez mais sofisticadas que a arquitetura abrange, que à sinergia entre linguagens pensada a partir dos anos 1960 pelo viés dos procedimentos intermídia e multimídia. Isto precisa ser melhor examinado, e sob o risco de esticar o retorno às reminiscências de um tipo de pensamento ao ponto dele perder seus contornos, um foco de interessa são os usos de processos de fantasmagoria e certas experiências de teatro no espaço público (conforme mapeadas por Philippe Alain-Michaud nos livro Aby Warburg e a imagem em movimento e Filme).

Alguns elementos neste sentido, relacionam-se ao próprio surgimento dos projetores como desenvolvido no trecho a seguir por Gareth Marples:

The first idea of projecting an image on a surface was envisioned in a drawing by Johannes de Fontana In 1420. It was a sketch of a monk holding a lantern. In the side of the lantern, there was a small translucent window that had an image of a devil holding a lance. The image, probably drawn on a thin sheet of bone, was projected onto a wall by the flame in the lantern. Without a lens, the image on the wall would have been very blurry. But the idea had provided inspiration to develop a projection model that would really work. Several people caught that inspiration, and any one of them could’ve been the actual inventor of the projector – it just depended who you asked and what country you were in. Among the probable inventors, with the time and place of their invention, are:

… fornecem um bom panorama do contexto inicial para o conjunto de questões que virá a se consolidar em torno da ideia de cinema expandido. O primeiro mantém-se em torno das relações entre audiovisual e espaço construído. O segundo é mais recortado em torno de problemas das linguagens sonoras, que todavia remetem à questões conceituais pertinentes.

Mas os inícios da relação entre som, imagem em movimento e arquitetura são abertas também em outro sentido, que completa aquele sugerido por Glöde. A busca por ambientes dispersos por várias telas embutidas no espaço construído vai chegar a um arranjo mais típica nos anos 1960, mais ou menos ao mesmo tempo em que virá se disseminar a ideia de uma arte ambiental. A principal mudança é que a esta altura, ao invés de investigar como expandir a arquitetura, há uma inversão que leva a se pensar construções com a finalidade específica de acomodar equipamentos de som e projeção (e o já mencionada Pavilhão Philipps surge como exemplo do difícil ponto de equilíbrio entre os dois aspectos, possivelmente modelo único nunca atingido antes ou repetido depois). Por isso, seria mais preciso tratar os ditos precursores como exemplos de um desejo ainda não muito formulado, cuja lógica vai ficar mais claro de fato nos ambientes radicais dos anos 1960.

É neste período que ocorre um amálgama, a partir de muitas direções, entre processos de linguagem que levam à uma opção pelos espaços construídos, e cada vez mais pelo espaço público. O cinema expandido surge de vetores de engajamento na passagem do bidimensional ao tridimensional que também levam à arte ambiental, à <em>land art</em>, à instalação, aos <em>happenings</em> e performances e às intervenções urbanas.

The starting point is thus a new definition of the term environment, developed at the end of the 1960s when the international debate on ecological issues began to take shape. In this cultural climate, Environment Art developed its research around the concept of natural space as a reality that goes beyond the simply panoramic role and includes the location, content and expressive medium trough which the aesthetic synthesis between work, site and time emerges. (trecho do livro coordenado por Cavazzini, Art of the 20th Century, no capítulo dedicado à Land Art)

Apesar do cuidado em tratar o processo em termos de vetores e amálgamas, que sugerem um vocabulário desligado das premissas de continuidade histórica, é preciso deixar explícito que seria um equívoco atribuir uma coerência lógica às relações entre experiências tão diversas. Elas existem, pois há o sabor de um tempo que aproxima aspectos de todas. Mas também estão ausentes, senão pelo esforço posterior de interpretação que sempre busca relacionar as coisas, aquela busca de sentido que parece inevitável para tranquilizar as pessoas diante da aleatoriedade e da falta de propósito dos episódios que vivem. É preciso levar em conta um pouco deste desejo de coerência, para amarrar os fios que aproximam energias tão dispares quanto o engajamento formal e construtivo central aos interesses modernistas de Taut e Gropius, e seus pólos opostos representados pelo amplo (e portanto também um pouco difuso e impreciso) universo dos acontecimentos e imaterialidades associadas à performance e à intervenção urbana. Não cabe, nesta rápida apresentação de exemplos, destrinchar mais longamente esta complexa miríade de experiências (contraditórias nos desejos que formulam também porque refletem uma contradição mais ampla, entre modernismo e contemporaneidade). Em todo caso, ao listar e apresentar o conjunto de trabalhos nesta cronologia provisória, lacunar, bastante inicial dos usos de som, imagem e vídeo em projeções no espaço público, é importante ter estes vetores em mente, pois aspectos de um e outro aparecem de forma mais ou menos explícita.

É um primeiro esforço de inserir em conjunturas mais amplas um grupo de trabalho reunido, num primeiro momento, pela proximidade no tempo e por certas opções formais compartilhadas. Além da inserção num intervalo de tempo bem delimitado, são obras que representam esta passagem do bidimensional ao tridimensional, seja quando aderem ao espaço construído, ou multiplicam-se pelos espaços públicos. Serão privilegiadas experiências que usaram dispositivos de projeção, pensando nas duas direções de relação entre a luz e o corpo apresentadas na palestra Feixes de Luz e Fachos de Luz. Também serão incluídos trabalhos precursores que fogem deste recorte mais restrito, de forma a tornar claras as conjunturas que tornaram possíveis as experiências de fotos projetadas, laser e finalmente vídeo exibido sobre empenas cega ou fachadas, em situações de montagem entre imagem, som e arquitetura que vão muito além do que o aporte técnico de termos como videomapping sugerem.