o charme indiscreto da classe média

É curioso comparar livros que tratam de temas relacionados, apesar dos contextos absolutamente diferentes. É o caso de Girl with a one track mind, de Abby Lee, O doce veneno do escorpião, de Bruna Surfistinha, e Alugo meu corpo, de Paula Lee. São autobiografias de mulheres e muito sexo. O livro de Abby Lee foi lançado na Inglaterra, em 2007, a partir dos textos publicados em seu blog. O livro de Paula Lee foi lançado em Portugal, em 2008. O livro de Bruna Surfistinha é o mais antigo, saiu em 2005. Mas a maior diferença é que o texto inglês trás a público a vida sexual liberal e intensa de uma personagem que poderia ser a vizinha de qualquer um. Sem custo adicional. Os textos das brasileiras contam suas vidas como prostitutas, as aventuras sexuais descritas passam por pagamentos regulares e vidas escondidas. Claro que é difícil generalizar, mas chama atenção a geografia do sexo autobiográfico. Será que a cultura anglo-saxã está mais predisposta a ouvir as confissões indiscretas de uma garota classe média que se aventura pelo mundo do sexo, sem culpa nem preço? Será que, no Brasil e em Portugal, o sexo sem culpa só pode ser um programa de garotas classe média pagas por seu clientes? Também pode ser coincidência, afinal o circuito de sexo que passa por bares de solteiro e festas de swing frequentado por Abby Lee é típico de várias metrópoles, e parece mais ligado às faces ocultas da vida urbana que a características culturais deste ou daquele país. Em todo caso, nesta onda mais ou menos recente de confissões sexuais e experiências singulares, chama tanto atenção o fato de várias mulheres estarem escrevendo sobre um assunto na maioria das vezes masculino (apesar de Anais Nin) quanto o fato das derivas na ilha que já foi berço da moral vitoriana serem mais liberais enquanto as aventuras na terra descoberta por Cabral dependem de relações compradas.

Estes livros também indicam uma mudança nos relatos sobre prostituição. É famoso o imaginário das chérettes, no século XIX. Charney e Schwartz descrevem, referindo-se a Benjamin, a prostituta como equivalente feminino da figura do Flauneur. Segue um trecho da introdução a O cinema e a invenção da vida moderna: “Na formulação de Janet Wolff, “Inventar a flâneuse está fora de questão: /…/ tal personagem tornou-se impossível pelas divisões sexuais do século XIX”. Outros argumentaram que a prostituta, que dividia a calçada com o flâneur, representava sua contraparte feminina”.

“À medida que Cheret alcançou certa proeminência na Paris de fim-de-século, o mesmo aconteceu com a chérette, como era chamada a dançarina com ares de ninfa que dominou seus desenhos /…/ Aqui, ela e seus amigos até mesmo apareciam montados em burros, antigos símbolos carnavalescos de libertinagem.” (Marcus Verhagen, p. 127-9).

No mesmo livro, o artigo de Marcus Verhagen expande esta discussão sobre a figura da prostituta no século XIX (no contexto de um debate sobre as formas de entedimento do cartaz, na época alçado ao papel de arte maior por seus defensores e desqualificado como “arte volúvel e degenerada” pelos detratores). Um dos aspectos explorados por Verhagen é a relação entre a prostituta e o surgimento da cultura de consumo (“As chérettes anteciparam os prazeres de consumo e os temperaram com fantasias de sedução”, p. 131). Equivalente remoto das atuais propagandas de cerveja com modelos de sensualidade duvidosa. Outro aspecto é o tabu em torno do comércio do sexo, que contamina a recepção do cartaz (“Ao apresentar a protagonista arquetípica do cartaz, d’Avenel descreveu com precisão a chérette, enfatizando a promessa sexual em suas roupas diáfanas, suas posturas ‘à vontade’ e expressões salientes; ela era, escreveu, ‘muito audaciosa ao empregar seus charmes’”, p. 133).

Ainda neste artigo, Verhagen aborda a relação entre a prostituta e o cartaz, conforme formulada por um de seus detratores. Talmeyr “descreveu o cartaz como um exercício de cosmética e sua vocação como um derivado da vocação das prostitutas: ‘O cartaz insolente /…/ está preparado para a guerra, enfeitado para a rua, embelezado para a esplanada ou para o teatro, e a nudez da prostituta, quando ela está despida, é uma nudez planejada, pintada, branqueada, uma nudez cosmética. Ela é uma atriz mambembe e uma criatura que está ali para fazer negócios‘” (p. 142). Verhagen identifica este tema como uma constante na época, ao afirmar que diversos “escritores, incluindo alguns defensores do cartaz, traçaram o mesmo paralelo” (p. 142) — ele cita como exemplo La Réclame, “um tipo de hino à prostituição, do escritor decadentista Félicien Champsaur; com termos piegas e alegóricos, ela foi retratada conspirando na escravização gradual de uma jovem e seus pretendentes” (p. 142).

O contexto em que esta discussão se insere é a passagem para a modernidade e os processos de “mobilidade social difusa”, tidos como um perigo pela elite da época (p. 145). Este tema será desenvolvido em http://contradiccoes.net/puc/aula2/, a partir do seguinte trecho do texto: “Ao associá-lo ao processo democrático e ao rejeitar a visão de que ele era uma arte autônoma, d’Avenel estava expressando a preocupação com que o surgimento da cultura de massa foi recebido nos círculos conservadores”.

Vale observar como esta percepção das linguagens técnicas como “degeneradas” estende-se para outras linguagens. Um exemplo é o primeiro cinema, conforme descrito por Arlindo Machado em “Esses lugares iníquos, esses espetáculos suspeitos…”. No texto, Machado afirma que “A pornografia, como não podia deixar de ser, corria solta. A Biograph americana e a Pathé francesa transformaram o erotismo em uma de suas especialidades. Cenas de adultério, mulheres se despindo para ir para a cama, personagens míticas fazendo amor, tudo era válido para excitar uma platéia já por si só bastante suscetível. A Biograph produziu vários filmes curtíssimos destinados sobretudo aos peepshows (salas dotadas de quinetoscópios, onde os espectadores espiavam os filmes por visores individuais), nos quais atrizes seminuas davam piscadinhas cúmplices para o espectador, implicando-o abertamente como voyeur dentro da cena” (p. 81).

A mudança na forma como se representa a prostituta (com o surgimento do relatos autobiográficos de mulheres que passaram pela experiência de venderem seus corpos no mercado do sexo) indica um processo mais amplo de crescente heterogeneidade de vozes na cultura contemporânea (conforme descrito em no relato sobre a mudança na forma com que o problema da atenção é tratado, no séculos XIX e XX, e a relação entre esta mudança e o surgimento do politicamente correto http://contradiccoes.net/puc/aula1/).

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O mercado do prazer – Livro mapeia a indústria da exploração sexual em todo o mundo
http://acervo.folha.com.br/fsp/2009/02/01/72/

Chester Brown escapa do moralismo em HQ didática e divertida
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1121463-critica-chester-brown-escapa-do-moralismo-em-hq-didatica-e-divertida.shtml